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20 DE AGOSTO DE 2017
Criança Esperança
afronta
nossa consciência
PAULO MOREIRA LEITE
O jornalista e escritor Paulo Moreira Leite é diretor do 247 em Brasília
Criança Esperança
afronta
nossa consciência
Houve uma época em que
o programa Criança Esperança era visto com a inocência das iniciativas
filantrópicas – e seu rosto era o de Renato Aragão, o último palhaço genuíno
que a TV brasileira foi capaz de exibir.
Na
versão 2017, o Criança Esperança tornou-se uma plataforma política, com agenda,
palavras de ordem e uma linha de intervenção definida sobre as grandes questões
do país.
"Qual
o grande problema do Brasil?" perguntou, na noite de sábado a atriz
Leandra Leal, uma das apresentadoras. "A corrupção", respondeu Marcos
Caruso, o Pedrinho da novela das 7 Pega-Pega, alinhado com a orientação da
casa, que desde 2014 empenha-se em transformar Sérgio Moro em ídolo popular.
Numa
tentativa de paródia de um sucesso de Gonzaguinha, o humorista Marcelo Adnet
tentou fazer graça com o refrão "é bonita, é bonita, é bonita,"
substituindo por "é corrupta, é corrupta, é corrupta."
Mobilizando
estrelas das novelas e da linha de shows, o tom pós-golpe tem uma função óbvia.
Pretende encobrir uma realidade vergonhosa para um programa dedicado a pedir a
população que tire dinheiro do próprio bolso para apoiar projetos que –
supostamente – possuem o compromisso de combater a pobreza e a miséria.
O
constrangimento encontra-se na atuação política da Globo na
"imbecilização" do país – as palavras são do sociólogo Jessé Souza,
presidente do IPEA entre 2015-2016 -- inseparável da criação do ambiente
nefasto que, permitiu o desmonte da 6ª maior economia do mundo e abriu caminho
para o desemprego recorde e uma recessão sem perspectiva, fatores fundamentais
para o atual recrudescimento da miséria e desigualdade. Depois de atravessar
quatorze anos – de 2003 a 2016 – num esforço permanente de enfraquecimento e
combate a políticas de combate a desigualdade e abertura de oportunidades aos
mais pobres, a Globo volta a cena para pedir – em tom de aulinha cívica -- que
os brasileiros corram ao telefone para fazer alguma coisa. É imoral como o
sujeito que provoca o incêndio e aparece no dia seguinte para vender serviços
de bombeiro.
Num
país onde os programas de Estado Mínimo de Temer-Meirelles – apoiados de forma
integral e sem remorsos pela Globo – levaram à expulsão de um milhão de
beneficiários do Bolsa-Família, ao esmagamento do FIES e das bolsas do Pró-Uni,
ao desmonte já consumado dos direitos trabalhistas, o Criança Esperança afronta
a consciência dos brasileiros. Sua única função reconhecida é repetitiva: ajuda
a sustentar a visão de que, ao longo da História, as tragédias só costumam
repetir-se como farsa.
Alguns
exemplos. Entre outros assuntos, o programa de sábado foi uma noite de
denúncias sobre o massacre da juventude negra do país. São fatos verdadeiros e
é bom que sejam debatidos. O problema é fazer isso na tela da mesma emissora
que por mais de uma década usou seu poderio econômico, político e cultural para
combater programas de ação afirmativa e cotas raciais, possivelmente a mais
importante iniciativa na abertura de oportunidades aos afrodescendentes do país
depois da Lei Aurea e das leis contra o racismo.
Hoje
um programa conceituado de combate à miséria, imitado e replicado em dezenas de
países, o Bolsa Família foi alvo, desde o lançamento, em 2004, ainda no
primeiro mandato do governo Lula, de uma campanha permanente de denúncias
erradas, exageradas e injustas. Sempre ficou claro que o objetivo era criar um
ambiente de suspeitas e criminalização contra toda política em benefício dos
mais os pobres e a luta contra a pobreza. A Globo fez o possível para que o
programa desse errado. Mas a proposta deu tão certo que o Brasil saiu do Mapa
da Fome da ONU – não por acaso criado por um brasileiro, Josué de Castro.
O
problema aqui é de regressão civilizatória. Vivemos num país onde só muito
recentemente os direitos sociais passaram a ser reconhecidos como parte da
cidadania e políticas de Estado, não como versões variadas para
"esmola". Até muito recentemente, a luta necessária contra a miséria
e a exclusão funcionava como uma oportunidade para os bem-nascidos exercitarem
a própria generosidade – e seus aliados montarem esquemas condenáveis de troca
de favores e domínio político.
Alvo
de uma pequena homenagem no final do programa, Renato Aragão deixou escapar que
vivemos em 2017 um "ano difícil". Aragão foi o idealizador daquilo
que mais tarde iria se chamar Criança Esperança.
Em
1985, quando tinha o nome de SOS-Nordeste, o programa recolheu donativos para
amenizar o sofrimento da população desta região do país, atingida por uma seca
de proporções trágicas.
Como
parte da maré ideológica conservadora liderada por Margaret Thatcher e Ronald
Reagan, vivia-se o tempo de desmanche dos serviços de assistência social no
mundo inteiro. No mais puro Consenso de Washington, dizia-se que essas tarefas
deveriam ser assumidas por ONGs filantrópicas que, no mais puro Consenso de
Washington, iriam fazer o papel do Estado com mais eficiência e pontualidade. O
resultado no plano internacional está aí – e seu sinal mais visíveis são os
refugiados africanos que cruzam o Mediterrâneo numa luta desesperada.
Trinta
e dois anos mais tarde, mais uma vez o Brasil enfrenta uma das mais graves e
prolongadas estiagens de sua história. O sofrimento é real mas não se veem
saques em supermercados nem cenas de desespero social do passado. Ainda que o
grau de irresponsabilidade social da dupla Temer-Meirelles não permita
descartar reações desesperadas no futuro, não há, no Brasil de hoje, o
equivalente às levas de refugiados de antigamente.
Não
se trata do efeito Criança Esperança e iniciativas semelhantes. Foram milhares
de cisternas, espalhadas pelas áreas críticas do Nordeste, que permitem ao
sertanejo armazenar água da chuva. Foram anos de estímulo aos investimentos na
região, que, invertendo uma curva da história. Foi a transposição do São
Francisco – combatida com tenacidade pela Globo, com auxílio da nova
conservadora Marina Silva.